Sobre A República dos Lacedemônios de Xenofonte

Entre os gregos e eles mesmos: um ensaio sobre identidade e alteridade em A República dos Lacedemônios de Xenofonte

Cleyton Tavares da Silveira Silva (1), Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011

Definir identidades não é uma tarefa fácil, levando-se em consideração a análise de sociedades dinâmicas cujas construções simbólicas de si e de outrem são ativas e modificam-se constantemente. A perspectiva atual no estudo das identidades aponta a confluência não de identidade, mas de identidades, no plural, os indivíduos constroem para si identidades distintas que se alternam uma sobre as outras (HALL, Stuart. 2006). A diversidade identitária hoje tem feito vir à tona discussões que buscam dar origens às formas de ver e entender o mundo em nossa época, e muitas vezes essas buscas acabam por retroceder centenas, as vezes milhares de anos a fim de no passado encontrar possíveis raízes do que deseja solidificar (HALL, Stuart. 2006).

A identidade entre os gregos e para os gregos se configura no contato entre eles próprios e entre os outros, os bárbaros, conceito que por sua vez tem sua historicidade. Para os gregos a noção de barbaroi é inicialmente lingüística, aqueles que não falam grego. Ou mesmo falam uma língua que não se pode, não se consegue, ou mesmo não se quer entender, a palavra bárbaro deriva da expressão onomatopaica bar bar (HARTOG, 2004, p. 94). Ou seja, aqueles que falam uma língua de difícil compreensão. Essa percepção inicial do barbarós traz consigo a idéia de substantivo, ou seja, o bárbaro é um ser, por outro lado as produções artísticas e literárias gregas, assim como a historiografia, principalmente tucidideana, produzem uma imagem do bárbaro ligada a todo tipo de comportamento reprovado pelo grego, ou mesmo por um ideal grego, a partir do século V a.C. a expressão bárbaros está entendida enquanto adjetiva, nomeando os praticantes do os gregos chamariam Hybres, descontrole, excesso, características contrastantes com o comedimento, o syphorosíne traço característico do grego.

Muito confuso o parágrafo.

Após as Guerras Médicas, período em que as disputas entre gregos e bárbaros são acirradíssimas, há uma rara e frágil unidade entre os gregos devido ao antagonismo aos persas, os asiáticos, por fim, Xerxes o bárbaro por excelência, segundo Tucídides. Contudo, esta referida unidade volta a ser rompida durante a Guerra do Peloponeso, conflito que pôs fim ao sistema políade utilizado na Grécia Antiga, principalmente no período Clássico. Entendemos que devido à falta de centralidade quanto ao governo das polis gregas configura-se uma grande generalização a utilização de imagens como a de uma Identidade grega, o Homem grego. Estas imagens correspondem a visões atuais, que buscam no passado legitimações para os discursos inclusivos e exclusivos de nossa época.

A identidade é definida exatamente no contato que é composto por um par, “nós”, os por assim dizer de dentro, e os de fora, “eles” (POUTIGNAT; STRIFFE-FENART, 1998). A concepção do dístico nós/eles é produzida através da aplicação de critérios, quesitos utilizados tanto para incluir elementos, como para excluir. Em relação aos antigos, é importante pensarmos que critérios os próprios gregos criaram para produzir entre si um sentimento de pertença, assim como se utilizaram destes mesmos elementos para definir os outros, os de fora, “eles”. No cerne destas questões pretendemos analisar como a identidade e alteridade entre os próprios gregos são expostas por Xenofonte em A República dos Lacedemônios, já que neste texto Xenofonte se utiliza do método comparativo para abastecer a idéia de superioridade de Esparta em relação às póleis gregas de seu tempo, a fim de que se faça um exercício de expressão da identidade para além da relação entre gregos e bárbaros, como também para que se perceba a própria diversidade existente na Hélade dos tempos de Xenofonte.

Identidade / Alteridade em Xenofonte

Xenofonte fora um membro da aristocracia ateniense, aluno de Sócrates, Estratego (2) de Atenas. Escreveu diversos títulos, dentre eles: Anabáse, Ciropédia, Helênicas, Agesilau, Memoráveis – Ditos e Feitos memoráveis de Sócrates, Econômico, Banquete, Apologia de Sócrates, Sobre a Cavalaria, O general de cavalaria, Hieron, As rendas e A constituição dos Lacedemônios. Como integrante das oligarquias atenienses, Xenofonte se alinhou ao governo dos Trinta tiranos, imposto por Esparta após a derrota ateniense em Egospotamói. Após o restabelecimento do regime democrático em Atenas (c. 402 a. C.) Xenofonte, alinhado à causa espartana, luta contra os atenienses em Coronéia sob o comando do rei espartano Agesilau, sendo logo após exilado de Atenas para Esparta. É possível que o exílio tenha se dado anteriormente, quando Xenofonte foi para o Oriente como mercenário para lutar em favor da causa de Ciro, após o conflito, Xenofonte e seus companheiros sofreram uma série de privações que mais tarde ocasionaram a produção de Anabásis, ou A retirada dos 10 mil, texto que já comentamos aqui, inclusive.

Ou seja, Xenofonte apoiou o golpe mais cruel (o de 404 a.C.) contra a democracia ateniense.

Com o exílio Xenofonte torna-se um indivíduo expatriado. Ele não é ateniense, devido aos seus posicionamentos políticos foi exilado de sua polis de origem. Ao mesmo tempo ele não é espartano, não viveu sob a égide espartana, não tem a educação espartana. Sobre Xenofonte podemos citar ainda a fala de José Francisco de Moura: O importante, na visão de Xenofonte, era ser rico, ter o que os ricos podiam ter, mas não ficar preso a essas riquezas pelo valor material delas, e sim pelo estilo e virtude que elas podiam proporcionar. (MOURA, 2000, 64-65). Xenofonte então enquanto aristocrata defendia seu decadente modelo político, a Oligarquia que após a derrota dos persas nas Guerras Greco-Pérsicas perdia espaço para as diversas democracias nascentes (MOURA, 2000).

Xenofonte por outro lado também é conhecido como um dos divulgadores das idéias socráticas, Lucien Febvre comentando o então recente lançamento Le Socratism de Xenophón de M. Luccionni, indica:

O Socratismo de Xenofonte é a imagem de Xenofonte por ele mesmo: de um militar, um proprietário, um economista – certamente não de um filósofo (tecnicamente falando). Em uma palavra, Xenofonte, legou à posteridade a bondade de Sócrates. O que olhando do alto procuram os filósofos qualificados. Os historiadores não. (FEBVRE, 1954) (3)

Xenofonte é então um personagem particular, mas essa singularidade, seu caráter ímpar é raro e importante para falarmos de Esparta, visto que há pouquíssimos relatos de indivíduos que passaram por Esparta, já que esta cidade proibia a permanência de estrangeiros em seu território, a não ser aliados, como Xenofonte, e por isso mesmo seu relato traz consigo uma profundidade e complexidade que não aparecem em outros relatos da época; a maneira com a qual Xenofonte indica como ele mesmo reconhece as características que são próprias dos gregos, nos é visível em Anabásis, mas procuraremos analisar agora outra fonte, A República dos Lacedemônios. Além disso, o estilo narrativo de Xenofonte que em muito difere do estilo de escrita dos filósofos de sua época, além de suas habilidades específicas enquanto comandante militar nos possibilitam um comentário avalizado sobre os espartanos, já que ele convivera com eles. Por outro lado, como indica Moura:

[…] as imagens de Esparta devem ser entendidas não apenas a partir do grupo social e do arcabouço mental de quem as produziu, como também através do estudo dos contextos locais de produção e de recepção destas mensagens, ao invés de, pura e simplesmente, concentrar-se no grau e no teor de sua “veracidade”(MOURA, 2000, p.58).

Antes, porém, isso significa que Xenofonte escreveu um panfleto político contra a democracia.

A fala de Xenofonte parte de um espaço específico, o da aristocracia militar grega do século V, nos possibilita a leitura de uma sociedade fechada em torno de si mesma, cujos cidadãos nada produziram sobre si mesmos, ou estes traços literários não chegaram aos nossos dias, mas através dos relatos de atenienses como Xenofonte as organizações políticas e culturais dos Espartanos chegaram a nós, ou mesmo o reflexo das imagens vistas por Xenofonte, cujo filtro, cuja interpretação do que tenha visto produziram as interpretações que fazemos a partir do texto, A República dos Lacedemônios.

O “lugar de fala” de Xenofonte, hehe: a aristocracia militar.

A República dos Lacedemônios: identidades e alteridade

Tradicionalmente esse texto foi produzido em torno do ano 395, seu contexto de produção é frenético, anos antes os espartanos haviam derrotados os atenienses em Egospotamói; o rei espartano Agesilau comanda Xenofonte na Vitória sobre os Persas em Sardes. Sua originalidade e autoria são ainda hoje repletas de dúvidas, a própria datação parece ser imprecisa, o que podemos observar a partir da  República (política) dos Lacedemônios – se pode afirmar, por outro lado, que é de autoria de um socrático laconizante que vivera nos círculos letrados da Atenas abalada pela morte Sócrates, há uma remota possibilidade de um ateniense chamado Antístenes possa ser o autor da obra, o que não se firma, já que além de Xenofonte contar com todos os critérios que citamos, ele manteve contato com Espartanos em boa parte da vida, tanto na companhia de simples soldados, como na presença de um dos reis de Esparta, Agesilau, que anos mais tarde recebeu como homenagem uma biografia.

Há no texto algumas lacunas deixadas tanto pelo tempo, nas diversas compilações que o texto sofreu até nos chegar, como nas possíveis adições que porventura o texto tenha sofrido. O caso mais grave é sem dúvida do Capítulo XIV, através de uma crítica interna vê-se uma clara mudança na rotina de louvor e exaltação dos costumes espartanos, pois neste capítulo Xenofonte aponta diversas vicissitudes, deixando outras de lado, que segundo ele põem a termo o sistema espartano.

Apesar do título Politéia, apontar um estudo das instituições políticas, Xenofonte não o faz, se não em alguns trechos. Sua clara preocupação se baseia na exposição dos resultados do cumprimento das leis através da reforma legislativa engendrada por Licurgo, algo que faz somente nos dez primeiros capítulos, pois do fascículo onze ao quinze, sua preocupação baseia-se no louvor da destreza do exército e realeza de Esparta.

Xenofonte se concentra na descrição da autocracia como modo-de-vida.

Ao construir seu discurso de explicação/justificação se utiliza de uma retórica comparativa entre os costumes espartanos e de outras cidades, a fim de demonstrar, as vantagens do estilo espartano e suas benesses futuras. Essa relação comparativa produz uma retórica da alteridade (HARTOG, 1999), e compõe para Xenofonte uma forma básica de um estudo da Grécia, estes elementos comparativos estão basicamente ligados às imagens da mulher, da moça antes do casamento; da educação, e portanto formação dos indivíduos desde a infância; e por fim do cumprimento das leis.

É isso: a autocracia como modo-de-vida.

Para Xenofonte o cumprimento das leis é fator preponderante para a explicação quanto ao poder espartano de então, para continuar sua explicação de por que os espartanos dominam a Grécia seu estudo indica a análise da própria sociedade espartana, já que os cidadãos são a cidade. Seu itinerário segue do casamento à criação dos filhos, pois segundo Xenofonte estes temas são centrais na legislação espartana escrita em conjunto por Licurgo, a pitonisa de Delfos e os cidadãos mais poderosos. Cabe aqui um discussão sobre a própria legislação, e assim sobre a própria imagem do legislador tão louvado por Xenofonte, Licurgo.

Assim como no título do livro a palavra ‘República’ não se justifica, também não se justifica o termo ‘cidadão’. Os espartanos não eram bem cidadãos e sim súditos.

A imagem de Licurgo remonta ao período arcaico, onde uma série de legisladores aparecem nas mais diversas cidades gregas, destacando-se Sólon em Atenas. A ideia da lei, nómos, e de, díke, justiça aparecem como fruto da adição de leis aos costumes das comunidades pré-clássicas. Xenofonte indica a informação que tem ao seu dispor no que diz respeito à existência e antiguidade de Licurgo:

Licurgo se diz ter vivido nos tempos dos Heráclidas; mas, mesmo sendo tão antigo, até hoje ainda, suas leis são muito novas para os demais, e o mais admirável de tudo: que todos louvam os costumes, mas imitar nenhuma cidade quer. (XENOFONTE, A República dos Lacedemônios, X, 8) (4).

Por que será?

Licurgo é uma figura emblemática, para alguns ela é apenas uma criação do período helenístico, proporcionada com o intuito de fazer com que se voltasse em Esparta os antigos costumes. Contudo, há inscrições ainda da época clássica que citam Licurgo, portanto sua imagem é anterior ao período helenístico (OLIVA, 1983, p. 66). Heródoto, por outro lado, parte da idéia de uma existência física de Licurgo, como um único cidadão, um dos mais considerados na Lacedemônia, que teria sido recebido em Delfos com a seguinte aclamação: ‘Eis que vem ao meu Templo, amigo de Júpiter e dos habitantes do Olimpo. Hesito em declarar-te um deus ou um homem; creio-te, antes, um deus. Contudo concorda com a idéia dos Lacedemônios que as leis foram trazidas de Creta‘ (HERÓDOTO, Histórias, I, 65 e 66). Cremos que o nome Licurgo pode ter sido um título, provavelmente de algum tipo de sacerdote, que, portanto fora dado a diversos indivíduos diferentes, e o santuário visto por Heródoto poderia ser a tumba destes licurgos. Entre os autores em questão é consensual a autoria dele das leis lacedemônias.

Já que o cumprimento das leis é a chave para o desenvolvimentismo espartano Xenofonte busca mostrar a importância da procriação e da educação das crianças, mas primeiro, destaca a preocupação de Licurgo, segundo ele mesmo, na função da mulher enquanto procriadora:

[…] e como a maioria dos que têm um ofício são sedentários, da mesma maneira os demais gregos consideram conveniente que também as donzelas levem uma vida agradável, trabalhando a lã. Pois bem, das que assim são criadas, como se esperar que venham a dar vida a algo grande? Licurgo, pelo contrário, pensou que para prover-se de roupas bastam as escravas, e que para as mulheres livres a mais importante missão, em sua opinião, é a procriação dos filhos; ordenou, pois, em primeiro lugar que o sexo feminino exercitasse não menos o seu corpo que o masculino. (Xenofonte, A República dos Lacedemônios I. 3- 4) (5).

Mulheres livres é um exagero.

A preocupação do legislador baseia-se no papel da mulher na procriação, no aumento da população. Xenofonte aqui destaca o caráter biológico da formação do futuro cidadão, da criança cujo ventre materno já se prepara para sua chegada. O que nos interessa aqui é a relação comparativa entre espartanos e outros que Xenofonte que traz consigo: enquanto em outras cidades as moças recebem trabalhos leves, como fiar a lã, atividades que realizavam sem grande esforço físico, em Esparta as donzelas passam por um treinamento físico árduo tanto quanto o masculino. Este exercício de alteridade que se dá em diversas passagens, o de opor costumes de outras cidades gregas aos de Esparta, essa iniciativa marca tanto a tentativa de explicação quanto a superioridade espartana sobre as cidades gregas de então, como a diferenciação entre elas. Essa interpretação também traz consigo tentativa de entendimento sobre as qualidades, as formulações culturais e políticas que levaram Esparta a tal posição na Hélade do final do século V início do IV.

A educação é uma das instituições cuja importância é destacada por Xenofonte. Ele acredita que o sucesso de Esparta deve-se ao cumprimento das leis, ao prosseguimento das estruturas políticas, para ele os espartanos são obedientes às legislações, pois aprendem desde muito cedo a respeitar e cumprir as ordens que lhes são dadas:

Pois os demais gregos, os que se privam de educar idealmente seus filhos, tão pronto como as crianças são capazes de compreender o que lhes diz, sem perda de tempo põem criados na qualidade de pedagogos para que cuidem deles, e com a mesma rapidez os enviam a escola para que aprendam as letras, música e ginástica. […] Licurgo, por outro lado, em lugar de permitir que cada um, particularmente, fizera de um dos escravos os pedagogos de seus filhos, ordenou que exerceria o poder sobre os meninos, um dos que desempenham os mais altos cargos, que é precisamente o que recebe o nome de Paidonomos (Xenofonte, A República dos Lacedemônios, II. 2) (6)

Segundo Xenofonte então Licurgo tratou a educação enquanto uma prática de obrigação estatal, criando um cargo dentro da estrutura pública, para que um cidadão educasse de maneira uniforme as crianças espartanas, o Paidonomos. A expressão composta pelo radical paido, que quer dizer “criança”, “menino”, e pelo sufixo nomos que quer dizer “lei”. Uma tradução mais literal nos traria a expressão “legislador infantil”, a imagem que Xenofonte quer trazer é a de alguém que educa segundo as leis. Já a expressão Paidagogos [tem um sufixo que] quer dizer “guiar”, “conduzir” (7). Ou seja, Paidagogos é uma expressão genérica para o professor, o tutor propriamente, aquele que conduz a criança, aos saberes, enfim ao conhecimento, enquanto o paidonomos é aquele que educa segundo as leis.

O papel do pedagogo espartano é uniformizar, incutir obediência ao… Estado!

A leitura comparativa de Xenofonte continua aí, essa concepção fica clara quando vemos desdém deste em relação aos outros gregos, aqueles que põem seus filhos para sejam educados por criados e escravos, aos quais chama paidagogos. A alteridade aparece em Xenofonte através de elementos culturais, de costumes, e em nenhum momento comenta ou faz menção quanto a quem não seja o grego, sua leitura de identidade exemplifica o que discute Johnathan M. Hall ao apontar que durante o século V as relações identitárias estavam se solidificando, se tornando mais complexas através de critérios de identificação pautadamente culturais (HALL, Jonathan, 2002). Ou seja, em Xenofonte, não especificamente em A República dos Lacedemônios, mas em Anabases (CARDOSO, 2002), as instituições políticas, como um elemento cultural, aparecem enquanto uma característica própria dos gregos.

Segundo Xenofonte, há portanto, a necessidade de construção de uma estrutura que organiza e aplica a educação na Esparta que descreve. O que se sabe para além de Xenofonte é que a divisão etária nas cidades gregas não fora de maneira alguma privilégio de Esparta, por outro lado, ocorria em diversas regiões da Hélade, como por exemplo em Creta (FINLEY, 1989), mas já que havia a prática, e que segundo Moses Finley, fora mais costumeira do que imaginamos, podemos entender que Xenofonte provavelmente viu tal prática aplicada na Pólis dos espartanos, e para ele esta característica tanto define os espartanos, como os diferencia em relação aos outros gregos, além de explicitar sua superioridade entre os demais.

Ainda tratando sobre a educação Xenofonte toca no assunto que é espinhoso, ainda hoje, a questão do contato íntimo entre homens adultos e garotos. Há a idéia de um contato de cunho educacional, enquanto se encontram menino e homem devem trocar entre si conhecimentos, experiências para aprendizado mútuo e crescimento de ambos, mas principalmente do menino, do paidos, ou paidika. Por outro lado esta concepção não nega o que houvesse contato sexual. Xenofonte por sua parte afirma em relação às ordenações de Licurgo:

[…] e assim ordenou, que na Lacedemônia os apaixonados se abstenham de agir com os meninos, da mesma maneira que se abstêm os pais dos filhos ou os irmãos entre si nos prazeres amorosos. Agora, que haja quem não possa acreditar nisto, não me admira certamente; porque, na maioria das cidades, as leis não se opõem ao desejo dos que gostam dos jovens (Xenofonte, A República dos Lacedemônios, II, 13-14) (8).

Há uma tentativa clara de negar a prática do contato sexual entre indivíduos do mesmo sexo, o que de certa forma nega uma série opiniões que apontam Esparta como uma das cidades onde tal prática além de exercida seria tratada com naturalidade (DOVER, 1994). O primeiro aspecto que se destaca é a idéia de sociedades militarizadas, e que a constante distância do contato com mulheres faria com que os homens procurassem contatos com seus servos. Há também a idéia do sexo entre homens como um rito de passagem comum aos povos de origem indo-européia, como destaca Bérnard Sergent (SERGENT, 1986 Apud POSSAMAI, 2010).

Hummm…

O que nos é interessante nesta passagem é pensar diferenciação implantada por Xenofonte, a noção de uma legislação específica para o regulamento da tal prática: […] porque, na maioria das cidades, as leis não se opõem ao desejo dos que gostam dos jovens. Mesmo para o contato entre amantes Erátas Paidikón, amante de meninos, que em nossa concepção seria de maneira clara uma relação comportamental que foge do domínio público, para Xenofonte esta relação fora prevista e tratada nas leis de Licurgo. Nas sociedades antigas na há uma divisão clara entre público e privado, mas que podemos perceber, através do grifo de Xenofonte, é a preocupação de mostrar a figura da lei, e ainda mais, o esforço de impor uma diferenciação cultural e legislativa entre Esparta e as outras cidades Gregas. Com isso está explicado o modelo de educação lacônio e dos restantes gregos. Em qual deles se fazem os homens mais obedientes, mais respeitosos e moderados no que deveria ser, examine quem queira. (A República dos Lacedemônios, III, 1)

Apesar de todas as diferenciações entre Espartanos e outros gregos, tentativa sintetizada e defendida por Xenofonte até aqui, há ainda elementos que fugiram de sua óptica, por exemplo, a stásis, as recorrentes crises que se abatiam sobre Esparta principalmente através das intensas desigualdades sociais, inclusive entre os cidadãos, o que acarretava no acirramento das disputas internas principalmente pela posse das terras agricultáveis. Na perspectiva de dar vazão, mesmo que seja de uma maneira minimalista, à estas questões, Xenofonte chama a atenção para a imagem das Syssytias, a prática das refeições comunais, onde cada cidadão traria determinadas quantidades de alimento e ali, em contíguo, enquanto o corpo de cidadão, os indivíduos comeriam em conjunto, de acordo com Xenofonte as quantidades corresponderiam a porções que não se fazem fartar, entretanto não os deixa esfomeados. (A República dos Lacedemônios, V, 3). Ou seja, a quantidade de ração distribuída de maneira uniforme é capaz de saciar, de dar conta às necessidades.

Percebemos em Xenofonte a exposição da instauração e conseguinte manutenção de uma ordem social que inibisse a desigualdade entre os cidadãos, através de um critério que pode soar como ingênuo, a divisão de porções iguais de refeição, mas segundo Xenofonte só é base do igualitarismo, já que além das refeições comum em Esparta seria vedada aos cidadãos toda atividade que não estivesse ligada à administração da cidade, assim não poderiam administrar seus negócios e, portanto enriquecer a si mesmos, portanto todos permaneceriam iguais, inclusive financeiramente:

Ao contrário também aos demais gregos instituiu Licurgo esses costumes em Esparta. Pois nas demais cidades, evidentemente, todos se enriquecem o quanto podem: um trabalha a terra, outro tem navios, outro comercia, outros também vivem de seus ofícios. Mas em Esparta aos homens livres lhes proibiu Licurgo que se dedicassem a tráfico algum, e os estimulou que só quando as obras procuram libertar as cidades, só estas obras devem se dedicar eles (Xenofonte, A República dos Lacedemônios, VII, 1) (9)

Deve, portanto, haver uma uniformidade inclusive financeira entre os cidadãos, para que a estabilidade social possa gerar seus frutos. Na tentativa de demonstrar a seu grupo de leitores os frutos de uma sociedade sem disputas econômicas, não há disputas pois cada um só pode tomar como profissão assuntos referentes à liberdade da cidade, são portanto obrigados a prestar este serviço de ordem pública. Por outro lado, Xenofonte aponta que em Esparta não há a necessidade de se ter dinheiro, já que não há a prática do consumo, pois ainda segundo Xenofonte não há fornecimento de roupas, por exemplo, e quando querem adornar-se usam flores ou mesmo sua boa aparência física (A República dos Lacedemônios, VII, 3).

O serviço cívico em Esparta era um serviço militar. Não há sociedade civil. Os súditos vivem no Estado.

Mais até, segundo Xenofonte Licurgo teria proibido a entrada de ouro e prata na cidade, pois acredita que os males do espírito são resultado das malícias geradas por lutas de origem econômica. O que vemos aqui não é somente a exposição de um ideal, mas a pregação, o proselitismo deste mesmo regime governamental.

Por fim, os dados informados por Xenofonte em A República dos Lacedemônios, trazem características de uma série de costumes praticados em Esparta. Não podemos afirmar categoricamente a fidelidade destas informações, pois há dúvidas quanto a autoria do texto; há opiniões que apontam para uma idealização empreendida por Xenofonte sobre Esparta; mas o que se sabe de fato, é que pouquíssimos foram os registros que nos legaram o tempo sobre esta Pólis, sabemos também que o acesso a Esparta fora delimitado a pouquíssimos atenienses, como Crítias e Xenofonte, e que portanto o relato destes indivíduos não podem ser deixados de lado; sabemos também, através de outros relatos, como Aristófanes (Lisístrata), que as imagens sobre Esparta estavam dispostas no século V e por isso podemos entender que nesta época a representação da Pólis de Leônidas fora essa mesma mostrada por Xenofonte.

Podemos concluir que Xenofonte tem uma visão agregativa de uma identidade pan-helênica, mas sua alteridade baseia-se não em critérios étnicos, mas em elementos culturais, comportamentais e políticos, como o estatuto da mulher e o papel da educação. Sua tentativa de propor uma análise comparativa foi feita no sentido de explicação e exposição da superioridade de Esparta em relação às outras póleis, mas para nós, podemos ver como no intervalo entre os séculos V e IV as relações de auto-reconhecimento entre os gregos estava bem estabelecidas, ao ponto de Xenofonte não fazer a mínima problematização do que seja grego, para ele há a importância de se afirmar que seu universo comparativo é grego.

É um texto escolar, com erros de português (alguns corrigi nesta reprodução) e debilidades de argumentação.

Notas

1 – Aluno do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN, onde tem desenvolvido a dissertação Viagem à Esparta: Identidade e Alteridade na Lacônia de Xenofonte. Bolsista CAPES.

2 – Cargo de extrema importância dentro do sistema políade. Consistia na função de administrar determinados aspectos do governo, tais como a Falange, o território, as Alianças e o Pireu, principal porto ateniense.

3 – Où, quand, comment, pendant combien de temps Xénophon a-t-il fréquenté Socrate? Mystère. Et cependant, l´auter de l´Anabase a largement contribué à rendre populaire son maître – et à vulgariser quelques-unes de ses idées essentielles à travers les temps et jusqu´aux nôtres. – Le socratisme de Xénophon est à l´image de Xénophon lui-même : c´est celui d´un militaire, d´un propriétaire, d´un économiste – non pas certes d´un philosophe (techniquement parlant). D´un mot, Xénophon a légué à la postérité le Socrate des bonnes gens. Sur quoi les philosophes qualifiés le regardent de haut. Les historiens pas.] FEBVRE, Lucien. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. Année 1954, Volume 9, Numeró 4, p. 547 – Consultado em Persée http://www.persee.fr/web/[…]Xenoph%C3%B3n&words=100&words=140&words=free em 21 de Janeiro de 2011.

4 – Livre tradução realizada pelo autor da versão em espanhol.

5 – Y, como la mayoría de los que tienen um oficio son sedentários, así los demás griegos consideran conveniente que también lás doncellas lleven uma vida apacible, trabajando la lana. Pues bien, de las que son así criadas, ¿cómo esperar puedan a dar vida a algo grande? Licurco por el contrario, pensó que para proveerse de ropas basta las esclavas, y que para las mujeres libres la mas importante misión, a su parecer, es la procreación de los hijos. (Xenofonte, A República dos Lacedemônios I. 3- 4)

6 – Pues de los demás griegos, los que se ufanam de educar inmejorablemente a sus hijos, tan pronto como sus niños son capaces de comprender lo que se les dice, sin pérdida de tiempo ponen a unos criados em calidad de pedagogos para que cuiden de ellos, y com la misma prisa los envían a la escuela para que aprendan letras música e gymnasia.( A República dos Lacedemônios, II. 2)

7 – A estrutura educacional não se baseia no Paidonomos, mas ainda com os mastigóforos (Xenofonte, A República dos Lacedemônios, II, 2), e os Eirene.

8 – […] y así ordeno que em Lacedemonia los enamorados se abstuvieran de tratar com los niños, Del mismo modo que se abstienen los pares de los hijos o los hermanos entre si em los placeres amorosos. Ahora bien, que haya quienes no puedan creer esto, no me admira ciertamente; porque em La mayoria dw las ciudades, las leyes no se oponen al apetito de los quegustan de los jóvenes.( A República dos Lacedemônios, II, 13-14)

9 – Contrarias también as las de los demás griegos son estas costumbres que instituyó Licurgo em Esparta. Pues en las demás ciudads, evidentemente, todos se enriquecen cuanto pueden: uno trabaja La tierra, outro tiene navios, outro comercia, otros también viven de sus ofícios. Pero em Esparta a los hombres libres lês prohibió Licrugo que se dedicaran a tráfico alguno y les impuso que solo cuantas obras procuran libertad a las ciuddades solo estas tuvieran por próprias de ellos. (A República dos Lacedemônios, VII, 1)

Fontes

HERÓDOTO. História. Trad. J. Brito Broca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.
JENOFONTE. La República de los Lacedemonios. Tradução de Maria Rico Gomez. Centro de Estudios Constitucionales. 1989. Edição Bilíngue. Grego-Espanhol.

Bibliografia

CARDOSO, Ciro Flamarion. A Etnicidade grega: uma visão a partir de Xenofonte. Phôinix, Rio de Janeiro, v. 8, p. 75-94, 2002.
DOVER, K. J. A Homossexualidade na Grécia Antiga. Trad. Luís S. Krautz. São Paulo: 1994
FINLEY, Moses. “Esparta”. IN . Economia e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 25-42.
HALL, Jonathan M. Hellenicity: betwenn Ethnicity and Culture. Chicago University Press, 2002
HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós Modernidade. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Dp&A, 2006.
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
. Memória de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
MOURA, José F. de. Imagens de Esparta: Xenofonte e a Ideologia Oligárquica. Rio de Janeiro: Laboratório de História Antiga, 2000. (Hélade supl. 2).
OLIVA, Pavel. Esparta y sus problemas Sociales. Madrid: Akal Editor, 1983.
POSSAMAI, Paulo César. Sexo e poder ma Roma Antiga: o homoerotismo na obra de Juvenal e Marcial. Bagoas. n.05, 2010, p.79-94
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