Harari e suas 21 lições para o século 21 – Parte I. 1 – Desilusão

Prosseguindo num novo itinerário de exploração dos Novos Pensadores em 2019 vamos continuar a ler e comentar o último livro de Yuval Harari (2018):

HARARI, Yuval (2018). 21 lessons for the 21st century. New York: Spiegel & Grau, 2018.

Vamos usar a tradução brasileira de Paulo Geiger. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Para baixar o PDF com o texto integral clique aqui: 21-licoes-para-o-seculo-21-Yuval-Noah-Harari

Já foi publicada a Introdução. Segue abaixo a Parte I. 1.

As notas em azul servem apenas como provocações para a conversação.

PARTE I

O desafio tecnológico

O gênero humano está perdendo a fé na narrativa liberal que dominou a política global em décadas recentes, justamente quando a fusão da biotecnologia com a tecnologia da informação nos coloca diante das maiores mudanças com que o gênero humano já se deparou.

É o gênero humano (Homo) que está perdendo a fé na narrativa liberal? A não ser como modo de dizer, a afirmação não parece vaga demais? Se não é nem a espécie humana (Homo Sapiens) que está perdendo a fé nessa narrativa e sim as pessoas diante da crise do Estado-nação, da forma de democracia representativa inventada pelos modernos para servir como modo de administração política do Estado-nação, da ascensão dos populismos contemporâneos e dos nacionalismos anti-cosmopolitas diante da emergência da sociedade-em-rede, não seria melhor colocar a questão de outra maneira?

1. Desilusão

O fim da história foi adiado

Os humanos pensam em forma de narrativas e não de fatos, números ou equações, e, quanto mais simples a narrativa, melhor. Toda pessoa, grupo e nação tem suas próprias lendas e mitos. Mas durante o século XX as elites globais em Nova York, Londres, Berlim e Moscou formularam três grandes narrativas que pretendiam explicar todo o passado e predizer o futuro do mundo inteiro: a narrativa fascista, a narrativa comunista e a narrativa liberal. A Segunda Guerra Mundial derrotou a narrativa fascista, e do final da década de 1940 até o final da década de 1980 o mundo tornou-se o campo de batalha de apenas duas narrativas: a comunista e a liberal. Depois a narrativa comunista entrou em colapso, e a liberal prevaleceu como o principal guia do passado humano e o manual indispensável para o futuro do mundo — ou assim parecia à elite global.

Que história é essa de “elite global”? Não há indícios de que as chamadas narrativas fascista, comunista e liberal tenham sido formuladas por uma elite global. O conceito é estranho. Ademais, a visão liberal do mundo não surgiu de uma narrativa e sim da invenção da democracia, mais de dois milênios antes de ter virado narrativa ideológica global (pois é isso que Harari está afirmando).

A narrativa liberal celebra o valor e o poder da liberdade. Diz que durante milhares de anos a humanidade viveu sob regimes opressores que concediam ao povo poucos direitos políticos, poucas oportunidades econômicas ou liberdades individuais, e restringiam rigorosamente os movimentos de indivíduos, de ideias e de bens. Mas as pessoas lutaram por sua liberdade, e passo a passo a liberdade se firmou. Regimes democráticos tomaram o lugar de ditaduras brutais. A livre-iniciativa superou as restrições econômicas. As pessoas aprenderam a pensar por si mesmas e a seguir o próprio coração, em vez de obedecer cegamente a sacerdotes fanáticos e tradições inflexíveis. Estradas de acesso livre, pontes sólidas e aeroportos movimentados substituíram muros, fossos e cercas de arame farpado.

A narrativa liberal reconhece que nem tudo vai bem, e que ainda há muitos obstáculos a superar. Grande parte de nosso planeta é dominada por tiranos, e mesmo nos países mais liberais muitos cidadãos sofrem com a pobreza, a violência e a opressão. Mas pelo menos sabemos o que fazer para superar esses problemas: dar às pessoas mais liberdade. Precisamos proteger os direitos humanos, garantir que todos possam votar, estabelecer mercados livres e permitir que indivíduos, ideias e bens se movimentem pelo mundo o mais facilmente possível. Segundo essa panaceia liberal — aceita, com ligeiras variações, tanto por George W. Bush quanto por Barack Obama —, se simplesmente continuarmos a liberalizar e globalizar nossos sistemas políticos e econômicos, o resultado será paz e prosperidade para todos (1).

Os países que se juntarem à irrefreável marcha do progresso serão em breve recompensados com paz e prosperidade. Países que resistirem ao inevitável sofrerão as consequências, até que eles também se iluminem, abram suas fronteiras e liberalizem suas sociedades, sua política e seus mercados. Pode levar tempo, mas ao fim até a Coreia do Norte, o Iraque e El Salvador parecerão a Dinamarca ou o estado de Iowa.

Nos anos 1990 e 2000 essa narrativa virou um mantra global. Muitos governos, do Brasil à Índia, adotaram receitas liberais numa tentativa de se juntar à marcha inexorável da história. Os que não as adotaram pareciam fósseis de uma era ultrapassada. Em 1997 o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, repreendeu confiantemente o governo chinês dizendo que sua recusa a liberalizar a política chinesa a punha “no lado errado da história” (2).

Contudo, desde a crise financeira de 2008, pessoas em todo o mundo estão cada vez mais desiludidas com a narrativa liberal. Muros e sistemas protecionistas estão de novo em voga. Cresce a resistência à imigração e a acordos comerciais. Governos supostamente democráticos solapam a independência do sistema judiciário, restringem a liberdade de imprensa e enquadram toda oposição como traição. Líderes com mão de ferro em países como a Rússia e a Turquia ensaiam novos tipos de democracias não liberais e francas ditaduras. Hoje em dia, poucos declarariam com todas as letras que o Partido Comunista Chinês está no lado errado da história.

Segundo Harari, a narrativa liberal foi formulada pelas tais “elites globais”, mas a desilusão com tal narrativa veio das pessoas e não de outras “elites” (como as forças políticas populistas e antidemocráticas)? De onde Harari tirou essa evidência sobre o Partido Comunista Chinês? As pessoas, na China – e na Hungria, na Turquia, na Venezuela e na Nicarágua, para citar alguns exemplos – também não estão desiludidas com as narrativas i-liberais?

O ano de 2016 — marcado pelo voto pró-Brexit na Grã-Bretanha e pela ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos — representou o momento em que essa onda tempestuosa de desilusão atingiu o cerne dos Estados liberais da Europa ocidental e da América do Norte. Enquanto há poucos anos americanos e europeus ainda tentavam libertar o Iraque e a Líbia pela força das armas, muita gente no Kentucky e em Yorkshire agora considera a visão liberal indesejável ou inatingível. Alguns descobriram o gosto pela velha ordem mundial, e simplesmente não querem abrir mão de seus privilégios raciais, nacionais ou de gênero. Outros concluíram (certa ou erroneamente) que liberalização e globalização são uma grande farsa que confere poder a uma elite minúscula às expensas das massas.

Em 1938 foram oferecidas três narrativas aos seres humanos para que escolhessem uma; em 1968, apenas duas; e em 1998 uma única narrativa parecia prevalecer; e em 2018 chegamos a zero. Não é de admirar que as elites liberais, que dominaram grande parte do mundo nas décadas recentes, tenham entrado num estado de choque e desorientação. Ter uma só narrativa é a situação mais cômoda de todas. Tudo está perfeitamente claro. Ser deixado de repente sem nenhuma narrativa é aterrador. Nada mais faz sentido. Um pouco como a elite soviética na década de 1980, os liberais não compreendem como a narrativa se desviou de seu curso preordenado, e lhes falta um prisma alternativo para interpretar a realidade. A desorientação os faz pensar em termos apocalípticos, como se o fracasso da narrativa em chegar a seu final feliz só possa significar que ela está sendo arremessada para o Armagedon. Incapaz de constatar a realidade, a mente se fixa em cenários catastróficos. Como a pessoa que imagina que uma forte dor de cabeça é sinal de tumor cerebral terminal, muitos liberais temem que o Brexit e a ascensão de Donald Trump pressagiam o fim da civilização humana.

Em parte, sim. Mas parece faltar conhecimento político ao autor. Há uma crise da política (propriamente dita, democrática) e há uma recessão ou desconsolidação democrática que não tem a ver apenas com a crença (ou fé, como ele diz) em narrativas e sim com o esgotamento de uma forma particular pela qual regimes políticos que tomam como sentido a liberdade (a democracia dos modernos) funcionavam.

DA MATANÇA DE MOSQUITOS À MATANÇA DE IDEIAS

A sensação de desorientação e catástrofe iminente é exacerbada pelo ritmo acelerado da disrupção tecnológica. O sistema político liberal tomou forma durante a era industrial para gerir um mundo de máquinas a vapor, refinarias de petróleo e aparelhos de televisão. Agora, tem encontrado dificuldade para lidar com as revoluções em curso na tecnologia da informação e na biotecnologia.

Políticos e eleitores mal conseguem compreender as novas tecnologias, que dirá regular seu potencial explosivo. A partir da década de 1990 a internet mudou o mundo, provavelmente mais do que qualquer outro fator, mas a revolução da internet foi dirigida mais por engenheiros que por partidos políticos. Você alguma vez votou em qualquer coisa que concerne à internet? O sistema democrático ainda está se esforçando por entender o que o atingiu, e está mal equipado para lidar com os choques seguintes, como o advento da inteligência artificial (IA) e a revolução da tecnologia de blockchain.

Democracia não tem a ver com votar. O fato de a internet ter surgido fora do mundo político e sujeita às suas dinâmicas não significa que seu surgimento não tenha sido resposta a uma mudança na morfologia e no metabolismo da sociedade.

Os computadores já tornaram o sistema financeiro tão complicado que poucos humanos são capazes de entendê-lo. Com a evolução da IA talvez logo cheguemos a um ponto em que as finanças não farão sentido nenhum para os humanos. E o que isso fará com o processo político? Dá para imaginar um governo que aguarda humildemente que um algoritmo aprove seu orçamento ou sua nova reforma fiscal? Enquanto isso redes peer-to-peer de blockchain e criptomoedas como o bitcoin poderão renovar completamente o sistema monetário, de modo que reformas fiscais radicais serão inevitáveis. Por exemplo, a cobrança de imposto sobre o dólar pode se tornar impossível ou irrelevante, porque a maior parte das transações não vai envolver um valor de câmbio claro e definido para a moeda nacional, ou qualquer moeda em geral. Portanto, os governos talvez tenham de inventar impostos totalmente novos — talvez um imposto sobre informação (que será o ativo mais importante na economia, e também a única coisa trocada em numerosas transações). Será que o sistema político conseguirá lidar com a crise antes de ficar sem dinheiro?

Ainda mais importante, as revoluções gêmeas da tecnologia da informação e da biotecnologia poderiam reestruturar não apenas economias e sociedades mas também nossos corpos e mentes. No passado, nós humanos aprendemos a controlar o mundo exterior, mas tínhamos pouco controle sobre o mundo interior. Sabíamos construir uma represa e interromper o fluxo de um rio, mas não sabíamos interromper o envelhecimento do corpo. Sabíamos projetar um sistema de irrigação, mas não tínhamos ideia de como projetar um cérebro. Se mosquitos zumbiam em nossos ouvidos e perturbavam nosso sono, sabíamos matar mosquitos; mas, se um pensamento zumbia em nossa mente e nos mantinha despertos à noite, a maioria de nós não sabia matar o pensamento.

As revoluções na biotecnologia e na tecnologia da informação nos darão controle sobre o mundo interior, e nos permitirão arquitetar e fabricar vida. Vamos aprender a projetar cérebros, a estender a duração da vida e a eliminar pensamentos segundo nosso critério. E ninguém sabe quais serão as consequências disso. Humanos sempre foram muito melhores em inventar ferramentas do que em usá-las sabiamente. É mais fácil manipular um rio construindo uma represa do que prever todas as complexas consequências que isso trará para o sistema ecológico mais amplo. Da mesma forma, será mais fácil redirecionar o fluxo de nossa mente do que predizer o que isso fará a nossa psicologia pessoal ou nosso sistema social.

No passado, adquirimos o poder de manipular o mundo a nossa volta e de remodelar o planeta inteiro, mas, como não compreendemos a complexidade da ecologia global, as mudanças que fizemos inadvertidamente comprometeram todo o sistema ecológico e agora enfrentamos um colapso ecológico. No século que vem a biotecnologia e a tecnologia da informação nos darão o poder de manipular o mundo dentro de nós e de nos remodelar, mas porque não compreendemos a complexidade de nossa própria mente as mudanças que faremos podem afetar nosso sistema mental de tal modo que ele também vai quebrar.

As revoluções em biotecnologia e tecnologia da informação são feitas por engenheiros, empresários e cientistas que têm pouca consciência das implicações políticas de suas decisões, e que certamente não representam ninguém. Parlamentares e partidos serão capazes de assumir essas questões? No momento, parece que não. O poder disruptivo da tecnologia nem chega a ser prioridade na agenda política. Assim, durante a corrida presidencial de 2016 nos Estados Unidos, a principal referência a uma tecnologia disruptiva foi relativa ao escândalo dos e-mails de Hillary Clinton (3) e, apesar de tudo que se disse sobre o fechamento de postos de trabalho, nenhum candidato mencionou o impacto potencial da automação. Donald Trump avisou aos eleitores que mexicanos e chineses iriam tomar seus empregos, e que, portanto, eles deveriam construir um muro na fronteira mexicana (4). Ele nunca avisou aos eleitores que algoritmos iriam roubar seu trabalho, nem sugeriu que se construísse um sistema de proteção cibernético na fronteira com a Califórnia.

Esse pode ser um dos motivos (embora não o único) pelo qual até mesmo eleitores no coração do Ocidente liberal estão perdendo a fé na narrativa liberal e no processo democrático. As pessoas comuns talvez não compreendam a inteligência artificial e a biotecnologia, mas percebem que o futuro as está deixando para trás. A condição de vida de uma pessoa comum na União Soviética, na Alemanha ou nos Estados Unidos em 1938 talvez fosse sombria, mas sempre lhes diziam que ela era a coisa mais importante do mundo, que ela era o futuro (contanto, é claro que fosse uma “pessoa normal” e não judia ou africana). Ela olhava os pôsteres de propaganda — que, tipicamente, mostravam mineradores, operários siderúrgicos e donas de casa em poses heroicas — e ali se via: “Eu estou naquele pôster! Sou o herói do futuro!” (5).

Em 2018 a pessoa comum sente-se cada vez mais irrelevante. Um monte de palavras misteriosas são despejadas freneticamente em TED Talks, think tanks governamentais e conferências de alta tecnologia — globalização, blockchain, engenharia genética, inteligência artificial, aprendizado de máquina —, e as pessoas comuns bem podem suspeitar que nenhuma dessas palavras tem a ver com elas. A narrativa liberal era sobre pessoas comuns. Como ela pode continuar a ser relevante num mundo de ciborgues e algoritmos em rede?

No século XX, as massas se revoltaram contra a exploração, e buscaram traduzir seu papel vital na economia em poder político. Agora as massas temem a irrelevância, e querem freneticamente usar seu poder político restante antes que seja tarde. O Brexit e a ascensão de Trump poderiam, assim, demonstrar uma trajetória contrária à das revoluções socialistas tradicionais. As revoluções russa, chinesa e cubana foram feitas por pessoas que eram vitais para a economia, mas às quais faltava poder político; em 2016, Trump e Brexit foram apoiados por muita gente que ainda usufruía de poder político, mas que temia estar perdendo seu valor na economia. Talvez no século XXI as revoltas populares sejam dirigidas não contra uma elite econômica que explora pessoas, mas contra a elite econômica que já não precisa delas (6). Talvez seja uma batalha perdida. É muito mais difícil lutar contra a irrelevância do que contra a exploração.

Esta parece ser a tese política central de Harari: as pessoas não estão sendo exploradas e sim descartadas. Merece discussão.

A FÊNIX LIBERAL

Esta não é a primeira vez que a narrativa liberal enfrenta uma crise de confiança. Desde que essa narrativa passou a exercer uma influência global, na segunda metade do século XIX, ela tem passado por crises periódicas. A primeira era da globalização e da liberalização terminou no banho de sangue da Primeira Guerra Mundial, quando a disputa geopolítica imperial interrompeu precocemente a marcha global para o progresso. Nos dias seguintes ao assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, constatou-se que as grandes potências acreditavam muito mais no imperialismo que no liberalismo, e em vez de unir o mundo mediante um comércio livre e pacífico elas se concentraram em conquistar uma fatia maior do mundo pela força bruta. Porém o liberalismo sobreviveu ao momento de Francisco Ferdinando e emergiu desse turbilhão ainda mais forte que antes, prometendo que aquela fora a “guerra para pôr fim a todas as guerras”. A carnificina sem precedente havia supostamente ensinado ao gênero humano quão terrível é o preço do imperialismo, e agora a humanidade estava enfim pronta para criar uma nova ordem mundial baseada nos princípios da liberdade e da paz.

Depois veio o momento de Hitler, nos anos 1930 e início dos 1940, quando o fascismo pareceu, por um instante, invencível. A vitória sobre essa ameaça apenas levou à seguinte. Durante o momento de Che Guevara, entre as décadas de 1950 e 1970, pareceu novamente que o liberalismo estava nas últimas, e que o futuro pertencia ao comunismo. No fim, foi o comunismo que entrou em colapso. O mercado provou que era mais forte que o gulag. Mais importante que isso, a narrativa liberal provou ser de longe mais flexível e dinâmica do que qualquer uma de suas oponentes. Triunfou sobre o imperialismo, sobre o fascismo e sobre o comunismo ao adotar algumas de suas melhores ideias e práticas. Em particular, a narrativa liberal aprendeu com o comunismo a expandir o círculo da empatia e a dar valor, além da liberdade, à igualdade.

É preciso ver se a absorção da ideia de igualdade juntamente com a ideia de liberdade (ou melhor, se tomar a igualdade como condição para a liberdade plena) foi positiva ou negativa para o que Harari chama de narrativa liberal?

No começo, a narrativa liberal se preocupava principalmente com as liberdades e privilégios de homens europeus de classe média, e parecia cega à situação difícil das pessoas da classe trabalhadora, das mulheres, das minorias e dos não ocidentais. Quando, em 1918, as vitoriosas Inglaterra e França falavam com empolgação sobre liberdade, não tinham em mente os súditos de seus extensos impérios. Por exemplo, as demandas dos indianos por independência tiveram como resposta o massacre de Amritsar em 1919, no qual o Exército britânico assassinou centenas de manifestantes desarmados.

Mesmo após a Segunda Guerra Mundial, liberais ocidentais ainda tinham dificuldade em aplicar seus supostos valores universais a povos não ocidentais. Assim, em 1945, quando os holandeses saíram de cinco anos de uma brutal ocupação nazista, uma das primeiras coisas que fizeram foi mobilizar um exército e enviá-lo para o outro lado do mundo para reocupar sua ex-colônia da Indonésia. Se em 1940 os holandeses cederam a própria independência após pouco mais de cinco dias de batalha, combateram por mais de quatro longos e amargos anos para suprimir a independência da Indonésia. Não surpreende que muitos movimentos de libertação nacional por todo o mundo tenham depositado suas esperanças nos comunistas de Moscou e Pequim, e não nos autoproclamados campeões da liberdade no Ocidente.

No entanto, aos poucos a narrativa liberal expandiu seus horizontes, e pelo menos em teoria passou a dar valor às liberdades e aos direitos de todos os seres humanos sem exceção. À medida que o círculo de liberdade se expandia, a narrativa liberal veio a reconhecer também a importância dos programas de bem-estar social no estilo comunista. A liberdade não vale muito se não vier acompanhada de algum tipo de rede de segurança social. Estados social-democratas de bem-estar social combinaram democracia e direitos humanos com serviços de educação e saúde bancados pelos governos. Até mesmo os ultracapitalistas Estados Unidos deram-se conta de que a proteção da liberdade exige ao menos alguns serviços públicos de bem- estar social. Crianças morrendo de fome não têm liberdade.

A narrativa de Harari não toma como referencial a democracia e sim a tal “narrativa liberal”. Ora, a democracia não é apenas uma narrativa: não se trata propriamente do quê (ou em quê) as pessoas acreditam (como ele imagina) e sim do que elas experimentam, de como elas vivem e convivem. Deve-se ler aqui um texto de 2015, de Larry Diamond (que entende mais do assunto) sobre a recessão democrática.

No início da década de 1990, pensadores e políticos declararam o “Fim da História”, afirmando com segurança que todas as grandes questões políticas do passado haviam sido resolvidas, e que o renovado pacote liberal de democracia, direitos humanos, livres mercados e serviços públicos de bem-estar social eram a única opção disponível. Esse pacote parecia estar destinado a se espalhar por todo o mundo, superar todos os obstáculos, apagar todas as fronteiras nacionais e transformar o gênero humano em uma comunidade global livre (7).

O conceito de fim da história de Fukuyama não é tão primário assim. É necessário entender o que ele chama de ‘história’ para entender a hipótese do fim da história.

Mas a história não chegou ao fim, e depois do momento de Francisco Ferdinando, do momento de Hitler e do momento de Che Guevara, encontramo-nos agora no momento de Trump. Desta vez, no entanto, a narrativa liberal não enfrenta um oponente ideológico coerente como o imperialismo, o fascismo ou o comunismo. O momento de Trump é muito mais niilista.

Sim, mas o trumpismo é um nacionalismo, um localismo não-cosmopolita, um populismo-autoritário e, nessa medida, também é uma narrativa (que, aliás, cresce no momento atual no mundo todo).

Enquanto todos os grandes movimentos do século XX tinham uma visão que abrangia toda a espécie humana — fosse dominação, revolução ou libertação global —, Donald Trump não oferece nada disso. Exatamente o contrário. Sua mensagem principal é que não é tarefa dos Estados Unidos formular nem promover qualquer visão global. Da mesma forma, os formuladores e apoiadores do Brexit dificilmente têm um plano para o futuro do Reino Desunido — o futuro da Europa e do mundo está muito além de seu horizonte. A maioria das pessoas que votaram em Trump e no Brexit não rejeitaram o pacote liberal inteiro — elas perderam a fé principalmente na parte sobre a globalização. Ainda acreditam na democracia, no livre mercado, nos direitos humanos e na responsabilidade social, mas acham que essas ideias belas só devem ir até a fronteira. Na verdade, acreditam que, para preservar a liberdade e a prosperidade em Yorkshire ou no Kentucky, é melhor construir um muro na divisa e adotar políticas não liberais em relação a estrangeiros.

Isso, obviamente, é uma narrativa.

A China, superpotência em ascensão, apresenta uma imagem quase invertida. É cautelosa na liberalização de sua política doméstica, mas adotou uma abordagem muito mais liberal em relação ao resto do mundo. Quando se trata de livre mercado e cooperação internacional, Xi Jinping parece ser o verdadeiro sucessor de Obama. Tendo posto o marxismo-leninismo em segundo plano, a China parece estar bem feliz com a ordem liberal internacional.

A emergente Rússia considera-se uma rival muito mais poderosa da ordem liberal global, mas, embora tenha reconstituído seu poder militar, está ideologicamente falida. Vladimir Putin certamente é popular na Rússia e entre movimentos de direita por todo o mundo, mas ainda não tem uma visão global que possa atrair espanhóis desempregados, brasileiros insatisfeitos ou estudantes idealistas em Cambridge.

A Rússia oferece uma alternativa à democracia liberal, mas esse modelo não é uma ideologia política coerente; é uma prática política na qual poucos oligarcas monopolizam a maior parte da riqueza e do poder de um país, e depois usam a mídia para ocultar suas atividades e consolidar seu domínio. A democracia baseia-se no princípio de Abraham Lincoln de que “é possível enganar todas as pessoas por algum tempo, e algumas pessoas o tempo todo, mas não é possível enganar todas as pessoas o tempo todo”. Se um governo é corrupto e não melhora a vida das pessoas, em algum momento os cidadãos se darão conta disso e substituirão o governo. Mas o controle da mídia pelo governo solapa a lógica de Lincoln, porque impede que os cidadãos conheçam a verdade. Mediante seu monopólio da mídia, a oligarquia governante pode sempre culpar os outros por suas falhas e desviar a atenção para ameaças externas — reais ou imaginárias.

Quando se vive sob tal oligarquia, sempre haverá alguma crise que parece mais importante que coisas fastidiosas como o sistema de saúde ou a poluição. Se a nação está enfrentando uma invasão externa ou uma diabólica subversão, quem tem tempo para se preocupar com hospitais superlotados e rios poluídos? Ao fabricar uma torrente interminável de crises, uma oligarquia corrupta pode prolongar seu domínio indefinidamente (8).

Porém, mesmo que duradouro na prática, esse modelo oligárquico não atrai ninguém. Diferentemente de outras ideologias que expõem com orgulho sua visão, oligarquias dominantes não se gabam de suas práticas, e tendem a usar outras ideologias como cortina de fumaça. Assim, a Rússia pretende ser uma democracia, e sua liderança proclama lealdade aos valores do nacionalismo russo e do cristianismo ortodoxo — e não à oligarquia. Extremistas de direita na França e na Inglaterra até podem confiar na ajuda russa e expressar admiração por Putin, mas seus eleitores não gostariam de viver num país que copiasse o modelo russo — um país com corrupção endêmica, serviços que funcionam mal, sem estado de direito e com uma desigualdade assombrosa. Segundo certos parâmetros, a Rússia é um dos países mais desiguais do mundo, com 87% da riqueza concentrada nas mãos dos 10% mais ricos da população (9). Quantos apoiadores do Front National da classe trabalhadora gostariam de copiar essa distribuição de riqueza na França?

Humanos estão abandonando seus locais de origem. Em minhas viagens pelo mundo conheci muitas pessoas que querem imigrar para os Estados Unidos, Alemanha, Canadá ou Austrália. Conheci algumas que queriam se mudar para a China ou o Japão. Mas ainda não conheci uma só pessoa que sonha em imigrar para a Rússia.

Quanto ao “Islã global”, ele atrai principalmente aqueles que nasceram em seus braços. Embora seja capaz de seduzir algumas pessoas na Síria e no Iraque, e mesmo jovens muçulmanos na Alemanha e na Inglaterra, é difícil imaginar Grécia ou África do Sul — muito menos Canadá ou Coreia do Sul — aderindo a um califado global como solução para seus problemas. Para cada jovem muçulmano da Alemanha que foi ao Oriente Médio a fim de viver sob uma teocracia muçulmana, provavelmente cem jovens do Oriente Médio gostariam de fazer o percurso inverso e começar uma nova vida na Alemanha liberal.

Isso talvez implique que a atual crise de fé seja menos grave que suas predecessoras. Todo liberal levado ao desespero pelos acontecimentos recentes deveria simplesmente relembrar como as coisas pareciam muito piores em 1918, 1938 ou 1968. E, afinal de contas, o gênero humano não abandonará a narrativa liberal, porque não tem alternativa. As pessoas podem dar um chute raivoso no estômago do sistema, mas, não tendo para onde ir, voltarão.

A narrativa de Harari, embora faça uma aposta correta (a aposta dos democratas) é otimista (o que não é aconselhável para a análise política).

As pessoas podem também desistir totalmente de ter uma narrativa global de qualquer tipo e buscar abrigo em lendas nacionalistas e religiosas locais. Os movimentos nacionalistas foram um fator político importantíssimo no século XX, mas careciam de uma visão coerente de futuro para o mundo que não fosse a de apoiar a divisão do globo em Estados-nação independentes. Os nacionalistas indonésios lutaram contra a dominação holandesa, os nacionalistas vietnamitas queriam um Vietnã livre, mas não havia uma narrativa indonésia ou vietnamita para a humanidade como um todo. Quando chegava a hora de explicar como a Indonésia, o Vietnã e todas as outras nações livres deveriam se relacionar umas com as outras, e como os humanos deveriam lidar com problemas globais, como a ameaça de uma guerra nuclear, os nacionalistas invariavelmente se voltavam para ideias liberais ou comunistas.

Aqui Harari tangencia o ponto mais importante do debate. Numa sociedade em rede não haverá mais narrativas globais de qualquer tipo. É o fim das narrativas totalizantes. O que significa que não precisamos de uma nova narrativa global (nem mesmo da narrativa liberal reconstruída). Com o estilhaçamento do mundo único, também vão para o ralo as mega-narrativas que pretendiam explicar tudo. Cada mundo social que emergir dessa nova morfologia e dessa nova dinâmica social terá sua própria narrativa política.

Porém se tanto o liberalismo quanto o comunismo estão agora desacreditados, não deveriam talvez os humanos abandonar a ideia de uma narrativa global única? Afinal, não foram todas essas histórias globais — até mesmo o comunismo — produto do imperialismo ocidental? Por que deveriam aldeões vietnamitas depositar sua fé em ideias concebidas por um alemão de Trier e um industrial de Manchester? Talvez cada país devesse adotar um caminho idiossincrático, definido por suas próprias tradições ancestrais? Talvez até mesmo os ocidentais devessem dar um descanso a suas tentativas de administrar o mundo e se concentrar em seus próprios assuntos, para variar?

Exatamente. Mas isso não significa necessariamente voltar às tradições ancestrais. O local conectado não pode ser mais o local separado. O local conectado é o mundo todo. Quando a globalização do local encontra a localização do global, tudo pode mudar.

Sem dúvida, é isso que está acontecendo em todo o globo, quando o vácuo deixado pelo colapso do liberalismo está sendo, de forma vacilante, preenchido por fantasias nostálgicas de algum passado local dourado. Donald Trump associou seu chamado para o isolacionismo americano com uma promessa de “Tornar a América grande novamente” — como se os Estados Unidos das décadas de 1980 ou 1950 tivessem sido uma sociedade perfeita que os americanos deveriam de algum modo recriar no século XXI. Os partidários do Brexit sonham em fazer da Inglaterra uma potência independente, como se ainda vivessem na época da rainha Vitória e como se o “isolamento esplêndido” fosse uma política viável na era da internet e do aquecimento global. As elites chinesas redescobriram seus legados imperiais e confucianos nativos, como um suplemento ou mesmo um substituto para a duvidosa ideologia marxista que importaram do Ocidente. Na Rússia, a visão oficial de Putin não é a construção de uma oligarquia corrupta, mas a ressurreição do antigo império tsarista. Um século depois da revolução bolchevique, Putin promete o retorno às glórias do tsarismo, com um governo autocrático mantido pelo nacionalismo russo e pela fé ortodoxa cujo poder se estende do mar Báltico ao Cáucaso.

Não se pode afirmar que haja um colapso do liberalismo e sim de uma determinada ideologia (ou narrativa) liberal. O liberalismo-político (que é sinônimo de democracia) não entrou em colapso: está apenas passando por um período (ou processo) de recessão ou de desconsolidação.

Sonhos nostálgicos semelhantes, que misturam adesão ao nacionalismo com tradições religiosas, sustentam regimes na Índia, na Polônia, na Turquia e em muitos outros países. Em nenhum lugar essas fantasias são mais extremadas que no Oriente Médio, onde islâmicos querem copiar o sistema estabelecido pelo profeta Maomé na cidade de Medina 1400 anos atrás, enquanto judeus fundamentalistas em Israel superam até mesmo os islâmicos e sonham em retroceder 2500 anos até os tempos bíblicos. Membros da coalizão que governa Israel falam abertamente sobre sua esperança de expandir as fronteiras modernas de Israel para que coincidam com as de Israel da Bíblia, sobre reinstituição da lei bíblica e até mesmo sobre reconstrução do antigo Templo de Iahweh no lugar da mesquita de Al-Aqsa (10).

As elites liberais olham horrorizadas para esses desenvolvimentos e esperam que a humanidade volte ao caminho liberal a tempo de impedir um desastre. Em seu discurso final nas Nações Unidas, em setembro de 2016, o presidente Obama advertiu seus ouvintes quanto ao retrocesso para “um mundo radicalmente dividido, e acima de tudo em conflito, entre fronteiras ancestrais de nação e tribo e raça e religião”. Em vez disso, disse, “os princípios de mercados livres e governança responsável, de democracia e direitos humanos e lei internacional […] são o fundamento mais firme para o progresso humano neste século” (11).

Obama ressaltou com razão que, a despeito das numerosas deficiências do pacote liberal, ele tem um histórico muito melhor do que quaisquer alternativas. A maioria dos humanos nunca usufruiu de maior paz e prosperidade do que sob a égide da ordem liberal do início do século XXI. Pela primeira vez na história, doenças infecciosas matam menos que idade avançada, fome mata menos que obesidade e violência mata menos que acidentes.

Mas o liberalismo não tem respostas imediatas para os maiores problemas que enfrentamos: o colapso ecológico e a disrupção tecnológica. O liberalismo baseou-se tradicionalmente no crescimento econômico para resolver conflitos sociais e políticos complexos. O liberalismo reconciliou o proletariado com a burguesia, os crentes com os ateus, os nativos com os imigrantes e os europeus com os asiáticos, ao prometer a todos uma fatia maior do bolo. Com um bolo que crescia constantemente, isso era possível. Contudo, o crescimento econômico não vai salvar o ecossistema global — justamente o contrário, ele é a causa da crise ecológica. E o crescimento econômico não vai resolver a questão da disrupção tecnológica — ele pressupõe a invenção de mais e mais tecnologias disruptivas.

Aqui fica claro que Harari não se refere ao liberalismo como comportamento político e sim a uma determinada narrativa liberal. Uma narrativa que tentava (equivocadamente) justificar a democracia pelos seus resultados econômico-sociais (proporcionar a todos a boa-vida do gado confinado holandês) e não pela sua natureza política (viver sem um senhor, não adotar modos guerreiros de regulação de conflitos, configurar campos de convivência mais compatíveis com a liberdade: com a liberdade de ser infiel às origens, com a liberdade de não ter rumo – o que significa sociedade aberta, com o futuro aberto – e com a liberdade de criar novos mundos sociais).

A narrativa liberal e a lógica do capitalismo de livre mercado estimulam as pessoas a ter grandes expectativas. Durante a parte final do século XX, cada geração — seja em Houston, Xangai, Istambul ou São Paulo — usufruía de uma educação melhor, serviços de saúde superiores e maior renda do que a que lhe antecedia. Nas décadas por vir, no entanto, devido a uma combinação de disrupção tecnológica e colapso ecológico, a geração mais jovem terá sorte se permanecer nos mesmos patamares.

Consequentemente, nos restou a tarefa de criar uma narrativa atualizada para o mundo. Assim como as convulsões da Revolução Industrial deram origem às novas ideologias do século XX, as próximas revoluções na biotecnologia e na tecnologia da informação exigirão novas visões e conceitos. As próximas décadas serão, portanto, caracterizadas por um intenso exame de consciência e pela formulação de novos modelos sociais e políticos. Será o liberalismo capaz de se reinventar mais uma vez, como na esteira das crises das décadas de 1930 e 1960, e emergir ainda mais atraente? Será que a religião e o nacionalismo tradicionais são capazes de oferecer as respostas que escapam aos liberais, e usar sua antiga sabedoria para moldar uma visão de mundo atualizada? Ou terá chegado o momento de romper totalmente com o passado e criar uma narrativa completamente nova que vá além não só dos antigos deuses e nações, mas até mesmo dos valores modernos centrais de liberdade e igualdade?

Por que temos de criar uma nova narrativa atualizada para o mundo? De que mundo Harari está falando? Ao que tudo indica, o localismo cosmopolita e o localismo não-cosmopolita ensejarão o surgimento, a convivência, a coexistência pacífica ou o choque de múltiplas narrativas.

Atualmente, o gênero humano está longe de qualquer consenso quanto a essas questões. Ainda estamos no momento niilista de desilusão e raiva, depois da perda da fé nas narrativas antigas, mas antes da aceitação de uma nova. Então, o que vem em seguida? O primeiro passo é baixar o tom das profecias apocalípticas e passar de uma postura de pânico para uma de perplexidade. O pânico é uma forma de prepotência. Deriva da sensação pretensiosa de que eu sei exatamente para onde o mundo está se dirigindo — ladeira abaixo. A perplexidade é mais humilde, portanto mais perspicaz. Se você tem vontade de correr pela rua gritando “O apocalipse está chegando!”, tente dizer a si mesmo: “Não, não é isso. A verdade é que eu não compreendo o que está acontecendo no mundo”.

O “gênero humano” de Harari parece um ente não social. De quem ele está falando, afinal? Das pessoas (que já são rede)? Serão os indivíduos que deverão entrar em “consenso” sobre as questões que ele coloca? Como isso seria possível?

Os capítulos seguintes tentarão esclarecer algumas das atordoantes novas possibilidades que temos pela frente, e como deveríamos proceder a partir daí. Porém, antes de explorar soluções possíveis para os impasses da humanidade, precisamos ter uma melhor noção do desafio que a tecnologia nos coloca. As revoluções na tecnologia da informação e na biotecnologia ainda estão em sua infância, e é discutível em que medida elas realmente são responsáveis pela atual crise do liberalismo. A maior parte das pessoas em Birmingham, Istambul, São Petersburgo e Mumbai só tem uma noção vaga, se é que tem, do surgimento da inteligência artificial e do possível impacto dela em sua vida. É certo, no entanto, que as revoluções tecnológicas vão ganhar impulso nas próximas décadas, e colocarão o gênero humano diante das provações mais difíceis que jamais enfrentamos. Qualquer narrativa que busque ganhar a adesão da humanidade será testada, acima de tudo, em sua capacidade de lidar com as revoluções gêmeas na tecnologia da informação e na biotecnologia. Se o liberalismo, o nacionalismo, o Islã ou algum credo novo quiser modelar o mundo em 2050, terá não só de desvendar a inteligência artificial, os algoritmos de Big Data e a bioengenharia como precisará também incorporá-los numa narrativa nova e significativa.

Novamente Harari volta com a questão de uma narrativa nova. Como ele trabalha com narrativas, parece não perceber que novos comportamentos políticos é que contam e não propriamente convicções (crenças) dos indivíduos. Novos comportamentos políticos podem surgir sem que indivíduos tenham sequer consciência das ideias que estariam pressupostas em tais comportamentos. Há uma fenomenologia da interação que Harari parece desconhecer ou não levar em conta.

Para compreender a natureza desse desafio tecnológico, talvez seja melhor começar com o mercado de trabalho. Desde 2015 tenho viajado pelo mundo e conversado com funcionários de governos, empresários, ativistas sociais e estudantes sobre os impasses da humanidade. Quando ficam impacientes ou entediados com essa conversa de inteligência artificial, algoritmos de Big Data ou bioengenharia, basta eu mencionar uma palavra mágica para atrair novamente sua atenção: empregos. A revolução tecnológica pode em breve excluir bilhões de humanos do mercado de trabalho e criar uma nova e enorme classe sem utilidade, levando a convulsões sociais e políticas com as quais nenhuma ideologia existente está preparada para lidar. Essa conversa sobre tecnologia e ideologia pode soar muito abstrata e remota, mas a perspectiva real de desemprego em massa — ou pessoal — não deixa ninguém indiferente.

Aqui Harari volta ao seu ponto (aliás, o único ponto que levanta): a criação de uma nova e enorme classe dos inúteis.

OBSERVAÇÃO FINAL EX POST – PROBLEMAS COM A ANÁLISE DO HARARI

Constatamos ontem – nesta sessão 50 dos Novos Pensadores – que Yuval Harari (2018), no seu novo livro “21 lições para o século 21”, confunde democracia liberal (o modo de regulação) com narrativa neoliberal (a ideologia). A confusão entre o colapso da narrativa neoliberal (ou liberal-econômica) e a recessão democrática atual (que está afetando negativamente as democracias liberais) é um erro grave de análise. E é uma pena. Depois de constatar que “os humanos pensam em forma de narrativas e não de fatos, números ou equações” (o que é correto), ele dá um salto triplo carpado epistemológico (ou hermenêutico) e conclui que as pessoas precisam de uma nova mega-narrativa global que dê conta de explicar tudo (quem somos, porque estamos onde estamos e para onde vamos) como faziam as velhas narrativas fascistas, comunistas e liberais-econômicas, inclusive o que acontecerá após o colapso ecológico e a disrupção tecnológica (com as próximas revoluções na biotecnologia e na tecnologia da informação). Como se uma nova narrativa totalizante fosse possível num mundo que já não pode ser único, posto que pulverizado em miríades de mundos sociais (como é próprio da sociedade-em-rede). Ora, a democracia não é uma narrativa (ainda que se possa sempre construir narrativas sobre ela): não se trata propriamente do quê (ou em quê) as pessoas acreditam globalmente (como ele imagina) e sim do que elas experimentam glocalmente, de como elas convivem (em cada local que, quando conectado, para todos os efeitos se converte no mundo todo). Política não é religião (composta por rebanhos de fiéis que creem numa doutrina) e sim um modo de interação em um sistema complexo, variacional e adaptativo, cujo comportamento é imprevisível. Se não fosse assim, a democracia (como política que toma por sentido a liberdade) não faria o menor sentido.

Notas

1. Veja, por exemplo, o discurso inaugural de George W. Bush em 2005, em que ele diz: “Somos levados, pelos fatos e pelo senso comum, a uma conclusão: a sobrevivência da liberdade em nosso país depende cada vez mais do sucesso da liberdade em outros países. A melhor esperança pela paz em nosso mundo é a expansão da liberdade em todo o mundo”. “Bush Pledges to Spread Democracy” (CNN, 20 jan. 2005). Disponível em:
<http://edition.cnn.com/2005/ALLPOLITICS/01/20/bush.speech/>. Acesso em: 7 jan. 2018. Para Obama, veja, por exemplo, seu discurso para a ONU: Katie Reilly, “Read Barack Obama’s Final Speech to the United Nations as President” (Time, 20 set. 2016). Disponível em: <http://time.com/4501910/president-obama-united-nations-speech- transcript/>. Acesso em: 3 dez. 2017.

2. William Neikirk e David S. Cloud, “Clinton: Abuses Put China ‘On Wrong Side of History’” (Chicago Tribune,
30 out. 1997). Disponível em: <http://articles.chicagotribune.com/1997-10-30/news/9710300304_1_human-rights- jiang-zemin-chinese-leader>. Acesso em: 3 dez. 2017.

3. Eric Bradner, “Hillary Clinton’s Email Controversy, Explained” (CNN, 28 out. 2016). Disponível em:
<http://edition.cnn.com/2015/09/03/politics/hillary-clinton-email-controversy-explained-2016/index.html>. Acesso em: 3 dez. 2017.

4. Chris Graham e Robert Midgley, “Mexico Border Wall: What is Donald Trump Planning, How Much Will It Cost and Who Will Pay for It?” (Telegraph, 23 ago. 2017). Disponível em:
<http://www.telegraph.co.uk/news/0/mexico-border-wall-donald-trump-planning-much-will-cost-will/>. Acesso em: 3 dez. 2017. Michael Schuman, “Is China Stealing Jobs? It May Be Losing Them, Instead” (New York Times, Nova York, 22 jul. 2016). Disponível em: <https://www.nytimes.com/2016/07/23/business/international/china-jobs-donald- trump.html>. Acesso em: 3 dez. 2017.

5. Para vários exemplos do século XIX e início do século XX, veja: Evgeny Dobrenko e Eric Naiman (Orgs.), The Landscape of Stalinism: The Art and Ideology of Soviet Space (Seattle: University of Washington Press, 2003); W. L. Guttsman, Art for the Workers: Ideology and the Visual Arts in Weimar Germany (Nova York: Manchester University Press, 1997). Para uma discussão genérica, veja: Nicholas John Cull, Propaganda and Mass Persuasion: A Historical Encyclopedia, 1500 to the Present (Santa Barbara: ABC-CLIO, 2003).

6. Para esta interpretação, veja: Ishaan Tharoor, “Brexit: A Modern-Day Peasants’ Revolt?” (Washington Post, 25 jul. 2016). Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2016/06/25/the-brexit-a-modern- day-peasants-revolt/?utm_term=.9b8e81bd5306>. Acesso em: 18 jun. 2018. John Curtice, “US Election 2016: The Trump-Brexit Voter Revolt” (BBC, 11 nov. 2016). Disponível em: <http://www.bbc.com/news/election-us-2016- 37943072>. Acesso em: 18 jun. 2018.

7. O mais famoso continua a ser, é claro, O fim da história e o último homem, de Francis Fukuyama (Londres: Penguin, 1992).

8. Karen Dawisha, Putin’s Kleptocracy (Nova York: Simon & Schuster, 2014). Timothy Snyder, The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America (Nova York: Tim Duggan Books, 2018). Anne Garrels, Putin Country: A Journey Into the Real Russia (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 2016). Steven Lee Myers, The New Tsar: The Rise and Reign of Vladimir Putin [O novo czar: A ascensão e o reinado de Vladimir Putin] (Nova York: Knopf Doubleday, 2016).

9. Credit Suisse, Global Wealth Report 2015. Disponível em: <https://publications.credit- suisse.com/tasks/render/file/?fileID=F2425415-DCA7-80B8-EAD989AF9341D47E>. Acesso em: 12 mar. 2018. Filip Novokmet, Thomas Piketty e Gabriel Zucman, “From Soviets to Oligarchs: Inequality and Property in Russia 1905- 2016” (World Wealth and Income Database, jul. 2017). Disponível em:<http://www.piketty.pse.ens.fr/files/NPZ2017WIDworld.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2018. Shaun Walker, “Unequal Russia” (The Guardian, 25 abr. 2017). Disponível em: <https://www.theguardian.com/inequality/2017/apr/25/unequal- russia-is-anger-stirring-in-the-global-capital-of-inequality>. Acesso em: 12 mar. 2018.

10. Ayelet Shani, “The Israelis Who Take Rebuilding the Third Temple Very Seriously” (Haaretz, Tel Aviv, 10 ago. 2017). Disponível em: <https://www.haaretz.com/israel-news/.premium-1.805977>. Acesso em: 7 jan. 2018. “Israeli Minister: We Should Rebuild Jerusalem Temple” (Israel Today, 7 jul. 2013). Disponível em:
<http://www.israeltoday.co.il/Default.aspx?tabid=178&nid=23964>. Acesso em: 7 jan. 2018. Yuri Yanover, “Dep. Minister Hotovely: The Solution Is Greater Israel without Gaza” (Jewish Press, 25 ago. 2013). Disponível em:
<http://www.jewishpress.com/news/breaking-news/dep-minister-hotovely-the-solution-is-greater-israel-without- gaza/2013/08/25/>. Acesso em: 7 jan. 2018. “Israeli Minister: The Bible Says West Bank Is Ours” (Al Jazeera, 24 fev. 2017). Disponível em: <http://www.aljazeera.com/programmes/upfront/2017/02/israeli-minister-bible-west-bank- 170224082827910.html>. Acesso em: 29 jan. 2018.

11. Katie Reilly, “Read Barack Obama’s Final Speech to the United Nations as President” (Time, 20 set. 2016). Disponível em: <http://time.com/4501910/president-obama-united-nations-speech-transcript/>. Acesso em: 3 dez. 2017.

 

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